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Teoria da História

Teoria da História

Como destaca Jörn Rüsen em sua obra Razão Histórica, teoria da história: fundamentos da ciência histórica (2001, p.14), a Teoria da História se refere ao “pensamento histórico em sua versão científica”. De acordo com esta perspectiva, pode-se por exemplo estabelecer uma distinção mais clara entre as “Filosofias da História” e as “Teorias da História” propriamente ditas, considerando que estas se vinculam ao novo momento em que a historiografia passa a reivindicar um estatuto de cientificidade, chamando a si novas necessidades. É também o que postula Arno Wehling em seu texto “Historiografia e Epistemologia Histórica” (2006, p.181), fazendo notar que, obviamente, já existiam formas de conhecimento histórico bem antes da passagem do século XVIII ao XIX, neste momento em que se passa a tomar como parâmetro para a historiografia a cientificidade e no qual, portanto, já se pode falar em “teorias da história”. Contudo, naqueles momentos anteriores – como a Antiga Grécia, o mundo Romano, a Idade Média, o Renascimento, ou o Moderno Absolutismo – apresentavam-se para a historiografia referenciais muito diversos, como “a anamnese grega, o patriotismo romano, o providencialismo medieval, ou o oficialismo absolutista” (WEHLING, 2006, p.181). Não é senão em um contexto no qual a cientificidade se apresenta como um referencial para a historiografia, aspecto que se afirma mais consistentemente na passagem do século XVIII para o século XIX, que se pode falar da emergência de “teorias da História” como grandes sistemas de compreensão sobre a História e a Historiografia.
É importante ressaltar ainda que a expressão “Teoria da História” é utilizada geralmente em três sentidos distintos: de um lado, pode significar o conjunto global de artefatos teóricos (conceitos, princípios, perspectivas) disponíveis aos historiadores; de outro lado, pode se referir aos grandes paradigmas teóricos – como o Historicismo, o Positivismo, ou o Materialismo Histórico – que começam a surgir precisamente quando a historiografia começa a manifestar pretensões cientificistas no século XIX e a se
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constituir como disciplina universitária; e, por fim, deve-se considerar que as “teorias da história” podem se referir a questões particulares. Neste sentido, podemos acompanhar as reflexões de Agner Heller (n.1929) em seu ensaio Uma Teoria da História (1981), no qual a filósofa húngara sustenta que, em termos de teorias da história, podemos nos referir tanto àquelas que se referem a objetos historiográficos específicos (eventos ou processos como a Revolução Francesa, o Nazismo, as Crises do Capitalismo), ou às teorias mais amplas, mais generalizadoras, que se referem aos modos de elaborar a historiografia (como o Positivismo, o Historicismo, o Materialismo Histórico):
“Há tipos diversos de teorias: umas mais particularistas e outras mais genéricas. Os historiadores podem fornecer uma teoria que diga respeito a determinado evento, a uma série de eventos, a um período, ao desenvolvimento de instituições segundo um entrecruzamento cultural e assim por diante” (HELLER, 1993, p.176).
No limite máximo de generalização, os historiadores podem oferecer teorias acerca do que seja a própria Historiografia. O que é a História, como ela se constrói, quais as tarefas do historiador diante da produção deste tipo de conhecimento? Para que serve a História; que tipo de conhecimento é a Historiografia? É possível, ou desejável, que o historiador faça previsões do futuro a partir de suas observações do Passado? Que tipo de envolvimento – contemplativo, distanciado, comprometido, militante – deve ter o historiador em relação à História de sua própria época? Deve a Historiografia ser colocada a serviço de alguma causa, ou deve conservar o ideal de constituir um tipo de conhecimento desinteressado?
Perguntas como estas são respondidas de maneiras diferenciadas pelas várias Teorias da História – no sentido mais generalizado da expressão – e terminam por constituir, na especificidade de suas respostas, paradigmas historiográficos distintos. Por exemplo, o paradigma Positivista e o paradigma Historicista encaminham teorias da História bem distintas. Um e outro podem ser contrapostos como modelos bem diversos de historiografia. Claro que, quando se fala em Positivismo e Historicismo, temos modelos limites. Os historiadores específicos, no seu trabalho singular, não precisam se enquadrar diretamente em um ou outro destes paradigmas. Podem buscar mesmo mediações entre os dois, podem propor variações, podem responder algumas das perguntas acima propostas de uma maneira ou de outra. Não são obrigados, os historiadores, a seguirem uma cartilha paradigmática. Geralmente, há historiadores cuja visão de mundo sobre a história e sobre a historiografia se aproximam, e é isto o que vai
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6 Já que citamos a filósofa húngara Agnes Heller, podemos lembrar que ela começa a sua produção filosófica como proeminente pensadora marxista, bem situada na linha de influência de Lukács, e que depois migra para uma perspectiva liberal. Para dar um outro exemplo, o historiador italiano Benedetto Croce inicia sua produção historiográfica como marxista, e depois se desloca para uma perspectiva francamente historicista.
dando origem a um determinado campo paradigmático. Claro que, uma vez que os historiadores estão mergulhados na própria história, com freqüência podem se distanciar em suas posições fundamentais os historiadores que antes estavam inseridos, por afinidade, no interior de um mesmo campo paradigmático. Neste caso, um historiador pode migrar ou colocar-se entre dois modelos historiográficos distintos, ou pode mesmo vir a construir uma nova teoria geral sobre a História 6. É importante, de todo modo, que consideremos os grandes paradigmas historiográficos que abordaremos mais adiante como campos que fornecem modelos ou um determinado horizonte de visibilidade ou de escolhas, mas não como prisões teóricas às quais teriam de se ajustar necessariamente todos os historiadores.
Outro aspecto relevante a ressaltar é que, em termos de “teorias da história”, não existe a princípio a possibilidade de se falar em algumas teorias ou paradigmas historiográficos que sejam consensualmente consideradas melhores do que outros. Tal como assinala Agner Heller em seu ensaio Uma Teoria da 
História (1981), as teorias da história competem entre si, ratificam-se ou retificam-se umas às outras, integram-se ou excluem-se mutuamente, apresentam leituras diferentes para os mesmos problemas e objetos historiográficos. As teorias da história não são deste modo cumulativas: uma não se constrói necessariamente sobre a outra, integrando-a ou refutando-a, como se tivéssemos aqui um processo cumulativo no qual os saberes vão se superpondo em um grande crescendo de precisão e refinamento teóricos. Se um historiador tiver por objetivo o de desenvolver uma nova teoria sobre os processos relacionados à Revolução Francesa, jamais poderá dizer que finalmente chegará com o seu trabalho à teoria correta e definitiva sobre esta questão. De igual maneira, ainda que defendia ferrenhamente o seu modo de conceber a historiografia de modo mais geral, um Positivista jamais poderá dizer que refutou o Historicismo, ou vice-versa, e tampouco o Materialismo Histórico poderá ser colocado como a tábua de leitura definitiva para examinar os processos históricos. Podemos, como historiadores, optar pelo Positivismo, pelo Historicismo, pelo Materialismo Histórico, por combinações entre estes paradigmas, por mediações entre eles, por uma abordagem weberiana, ou por uma teoria eclética à base de elementos de procedências teóricas diversas. Mas isto será sempre 
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uma opção teórica. Ainda que um historiador arrogue-se estar do lado da verdade em termos de escolhas teóricas, jamais haverá consenso sobre isto. A Teoria da História será sempre uma grande Arena, um eterno campo de disputas e diálogos vários.
Trata-se esta de uma situação um pouco distinta da que ocorre, ou pelo menos ocorreu até tempos recentes, com certos campos de conhecimento como a Física. Durante séculos, vigorou o paradigma newtoniano da Física, e as teorias que iam sendo construídas dentro deste campo de conhecimento apoiavam-se umas nas outras, ampliando um determinado horizonte de leitura da realidade no qual as descobertas e formulações teóricas feitas no passado tornaram-se bases para novas formulações no presente e no futuro. Havia também, é claro, aportes teóricos que no processo de reflexão e pesquisa dos físicos, ao longo da história de seu campo de conhecimento, viam-se descartados definitivamente, ocorrendo também um certo consenso de todos os físicos acerca do desenvolvimento cumulativo de seu campo de conhecimento, de tal maneira que se costumava falar em “descobertas” – algo que se tornava uma conquista definitiva para os físicos. Esse padrão só começou a ser quebrado com a emergência de novos paradigmas da Física, como a ‘Teoria da Relatividade’ ou a ‘Física Quântica’, que a rigor trouxeram novos modos de ver o mundo que eram bem distintos do paradigma newtoniano que vigorará durante séculos. Neste momento, que se dá na passagem do século XIX para o XX e nas primeiras décadas deste novo século, pode-se dizer que a Física, enquanto campo de saber específico, começou a experimentar algo que já era bem familiar aos historiadores e cientistas sociais: a convivência de teorias distintas que forneciam padrões distintos de visualização dos fenômenos físicos. Os físicos passaram a se defrontar, a partir de Einstein e da Física Quântica, afora outras diversas teorias, com o fato de que várias teorias podem ser apresentadas como corretas dentro de um certo campo de saber, embora fornecendo leituras bem diversificadas, ou mesmo antagônicas entre si, da realidade examinada. 
A competição entre teorias historiográficas já era antiga – seja no que se refere a teorías particularizantes sobre aspectos históricos específicos – como a Revolução Francesa ou a passagem do mundo medieval ao mundo moderno – seja no que se refere a teorias mais gerais sobre a própria história – sobre a história processual como um todo ou sobre os modos como se deve escrever a historiografia, por exemplo. Pensadores iluministas diversos ofereceram leituras diferenciadas daquilo que consideravam uma tendência da história universal; historiadores românticos do século XVIII e historicistas do século XIX criticaram precisamente esta idéia de que seja possível ou válido
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escrever uma história universal, válida para todos os povos; os Positivistas do século XIX reinvestiram na busca de leis gerais – e entre eles havia os que acreditavam que o desenvolvimento histórico era orientado pelo determinismo geográfico, pelo determinismo biológico, ou pelo determinismo econômico. Hegel introduziria na primeira metade do século XIX uma leitura dialética da história, de base idealista, e Marx retomaria de Hegel a proposta dialética para recolocar uma leitura materialista da História. No século XX, historiadores como Fernando Braudel teorizaram sobre os padrões múltiplos de temporalidade, introduzindo o conceito de “duração” nos modos historiográficos de abordar o tempo. No âmbito do Materialismo Histórico, infinitas variações teóricas seriam propostas pelos historiadores que tomaram como linha mestra de orientação os princípios estabelecidos por Marx e Engels no século anterior. Historiadores como Toynbee ou Spengler iriam propor uma visão de mundo sobre a história das civilizações que as abordava em termos de nascimento, ascensão e declínio. Benedetto Croce e Collingwood aproximariam a historiografia da Arte, por oposição a inúmeros outros historiadores que viam o seu campo de conhecimento como relacionado a uma Ciência ou a um tipo de conhecimento cientificamente conduzido.A Teoria da História, enfim, nunca deixou de multiplicar as suas alternativas internas. Abordar a Teoria da História, por isso mesmo, é adentrar um campo de diálogos, de disputas, de inovações.

José D'Assunção Barros 

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